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Para finalizar 2017: Entre a imprecisão e a enfermidade, o homem comum


Aceitar a imprecisão científica talvez seja a melhor maneira de nos acostumarmos com a fugaz condição da inteligência humana, tão sensível à entropia quanto a realidade em ser conceitualmente capturada. Cercar-se de conceitos milimetricamente conectados entre si, de modo a tornar coeso e compreensível o todo que produzem, possivelmente não seja suficiente para a potencialidade devastadora da vida. A precisão científica, um sonho maravilhoso, pode ser apenas um soluço da razão.

Então devemos abandonar a busca pela certeza total ou precisão absoluta? Enfim, devemos deixar de buscar a verdade irredutível? Definitivamente, não. Ao contrário de dar crédito às tolices sintetizadas no termo pós-verdade, mais que um oxímoro, um termo vazio, que se diz às tantas quando nada há para se dizer, buscar a verdade, a certeza total, o irredutível, é o que nos imuniza contra as doenças do espírito. O filósofo romeno Constantin Noica, caracteriza em seis as doenças do espírito contemporâneo. Três, derivadas da carência; e outras três, da recusa. Carência e recusa de três fatos irredutíveis: o particular, o geral e as determinações.

A carência do individual, ou todetite, faz o doente se interessar tão somente pelas essências e não pelas realidades particulares. O todetítico sente uma terrível necessidade de encontrar o individual autêntico, uma espécie de matriz geral de todos os indivíduos. O sujeito acometido dessa doença espiritual é incapaz de perceber o que é particular, singular. Noica aponta Platão como padecente dessa enfermidade, tomando por evidente sintoma aquela tendência incontrolável de impor à miserável cidade de Siracusa a idealidade pomposa da República perfeita. Platão era incapaz de enxergar naquela cidade uma realidade completa, ainda que imperfeita. Ele não percebia a completude do singular.

Já na carência do geral, na "obsessão de se elevar a uma forma de universalidade" e se "curar da amargura de ser uma simples existência individual sem nenhuma significação geral", o filósofo romeno identifica a catolite, do grego cathoulou, geral. Para Noica, uma doença típica do espírito humano que busca apoderar-se dos "sentidos gerais". E, nessa busca insana, acaba com muita frequência por cair na armadilha dos sentidos prontos, como as ideologias. Em busca de um "sentido geral" o catolítico se afasta da sociedade, da família, dos amigos, enfim, da vida cotidiana, para viver um mito. Os catolíticos mais medíocres sucumbem miseravelmente na tentativa vã de se transformarem em santos.

Aparentemente resignado, Noica observa que não apenas a todetite e a catolite estão aí para adoecer o nosso espírito. Lamentavelmente, também podemos padecer de uma desarmonia entre a percepção de nossa realidade individual e o sentido geral a que tendemos. Essa ausência de determinações adequadas, ele chama de horetite, do grego horos, determinação. O horetítico por excelência é similar ao personagem da literatura espanhola, D. Quixote de La Mancha, aquele que busca determinações para confirmar seu delírio de que é um "cavaleiro andante" e "combatente de dragões", uma espécie de herói. O espírito humano adoecido por horetite, não encontra no mundo as determinações que confirmariam a percepção dele sobre si mesmo. E se afunda na mágoa e na desilusão e, finalmente, desaparece na loucura.

Em síntese, a todetite, catolite e horotite são as doenças espirituais devidas à falta, ou carência, de um sentido do particular, do geral e de determinações. Contudo, não bastam essas tormentas para fazer da vida humana um inferno. Há também as doenças espirituais derivadas não da carência, mas da recusa, ou incompreensão, do particular, do geral e das determinações. Vejamos:

A doença espiritual derivada da recusa do individual, sobrepujado pelo geral ou por uma lei, é a atodecia. Para Noica, ninguém melhor que o escritor russo Tolstói para descrever os sintomas de um espírito atodécico. Adoecido, esse espírito não escapa do "controle do geral", do controle da lei, jamais reduzindo-se a uma "individualidade sedutora". O atodécico ama apenas impessoalmente, ama a humanidade, a coletividade, a classe, a pátria, jamais o indivíduo específico, o operário com nome e sobrenome. O atodécico vê todas as individualidades encapsuladas em estereótipos servis à lei geral e ao abstrato.

Já a doença derivada da recusa do geral é a acatolia. Trata-se de uma "rejeição categórica do geral". O acatólito percebe-se como um "individual" absoluto, exacerbando sua individualidade com "recusas provocadoras", algo maior que aquela típica audácia ignorante dos adultos mentalmente infantis. Não se enxerga como apenas mais um particular entre os indivíduos de sua espécie. É, como se disse, um absoluto singular. O exemplo literário escolhido por sua perfeita ilustração, é o personagem D. Juan, de Molière. E Noica sintetiza: "a acatolia é a doença do escravo humano que ignora todos os seus mestres, incluindo o seu mestre interior".

E, finalmente, a doença espiritual derivada da recusa das determinações, a ahorecia. O primeiro personagem que Noica apresenta como representativo é o hippie. O sujeito hippie é a perfeita recusa das determinações externas do que ele deveria ser. Mas recusando, ou não compreendendo as determinações, o sujeito arrisca destruir a comunicação, e, assim, reduzir-se a um "nada a dizer", ou a um balbuciar desconexo. Para Constantin Noica, é a ahorecia o "absurdo contemporâneo que lesa o ser mais profundamente". A ahorecia emudece para toda a grandiosidade insaturável do externo.

Para esse fascinante filósofo romeno, as doenças do corpo podem ser, eventualmente, infinitas. Mas as doenças do espírito são apenas essas seis. São doenças que acompanham a existência humana, são enfermidades ônticas. E elas nascem das "precariedades possíveis do ser". Em uma síntese final das seis doenças espirituais nos seus três duplos antagônicos, recapitulemos:

A todetite deteriora o espírito quando a precariedade de uma realidade individual impede o sujeito de internalizar as determinações derivadas de uma ordem maior e geral. Seu oposto é atodecia, enfermidade que se manifesta quando a precariedade, ou incompreensão, de toda realidade individual em harmonia com um geral já especificado por determinações várias não se realiza. É o típico sujeito perdido no mundo.

A catolite emerge de uma precariedade de percepção de uma ordem geral que se relaciona com a realidade individual que possui suas próprias determinações. A ordem geral não anula a individual e vice-versa. Seu oposto, é a acatolia, que emerge sob uma condição de precariedade do ser que resulta em uma projeção, numa realidade individual, de determinações que não se apoiam em nenhum sentido geral. O acatólito segue determinações sem fundamento algum: é um sujeito que vive como se fosse uma folha ao vento.

E, finalmente, a horetite que emerge da carência, ou da incompreensão das determinações emanadas de "uma realidade geral que já tem sua forma individual", ou seja, é pré-constituída a despeito da percepção racionalizada pelo sujeito. Seu oposto é a ahorecia: o indivíduo, após ter atingido um sentido pleno de uma totalidade, torna-se incapaz (ou se recusa) de se conceder determinações específicas, isto é, de atuar no mundo como uma singularidade entre tantas outras. O ahorécico acha que é uma divindade espalhada como ectoplasma por todas as dimensões e, por ser uma totalidade, não vê sentido em se comunicar com a finalidade de aprender alguma coisa, pois já sabe tudo ou não vê mais sentido em aprender coisa alguma.

A atividade científica é pródiga em diagnósticos e profilaxias. Mas os homens, de interior diurno e noturno, vêm e vão, alguns como folhas, outros como sementes. Sob as condições adequadas, alguns germinam, crescem, frutificam; e, outros, ainda que vivam longamente, não produzem um fruto sequer: tudo que têm a oferecer é a extensão de sua pequena sombra.

Para um próspero 2018, recomendo a leitura:

NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito contemporâneo, Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.

FAIS GILSON FAIS ADVOGADO. São Paulo. Brasil.

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